Capitalismo: uma história de amor (2009), documentário dirigido por Michael Moore, procura tensionar os limites éticos e sociais do sistema que forja a noção de universalidade humana e contrapõe muros e cercas farpadas para que os condenados da terra não possam se apropriar da riqueza socialmente produzida.
Flávio Ricardo Vassoler, via Carta Maior
Que podemos dizer sobre o sistema de (re)produção econômica e social mais contraditório com o qual a humanidade já se deparou? Um pensador do século 19, aos 18 anos, procurou avaliar os movimentos revolucionários do capitalismo:
“A burguesia, em seu reinado de apenas um século, gerou um poder de produção mais massivo e colossal do que todas as gerações anteriores reunidas. Submissão das forças da natureza ao homem, maquinário, aplicação da química à agricultura e à indústria, navegação a vapor, ferrovias, telegrafia elétrica, esvaziamento de continentes inteiros para o cultivo, canalização de rios, populações inteiras expulsas de seu habitat – que século, antes, pôde sequer sonhar que esse poder produtivo dormia no seio do trabalho social?”
O autor do trecho acima, empolgado com o potencial de expansão humana fomentado pelo capitalismo, ficou conhecido como um dos maiores inimigos do capital. Estamos diante de um trecho do Manifesto Comunista, de Karl Marx (e Friedrich Engels). Ora, o jovem Marx estava diante da ascensão primordial daquilo que hoje se convencionou chamar de humanidade. Contraditoriamente, foi a expansão exploratória do capitalismo que fez com que o mundo se interligasse. Particularismos foram sendo rompidos – e padronizados em função do chicote do dominador. As grandes navegações chacinaram africanos e indígenas, ao mesmo tempo em que possibilitaram o contato com o outro além-mar. Júlio Verne se tornou extemporâneo quando a sua volta ao mundo em 80 dias passou a ser feita em algumas horas. O computador que utilizo para escrever este texto é a resultante de trabalhos espraiados por regiões do mundo que o generalíssimo Júlio César sequer podia imaginar.
“Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” (Marcos, 12, 31)
O capitalismo remove o sermão de Cristo da montanha e, ao menos como potência, irradia a irmandade para a estepe do mundo. O próximo já não precisa estar ao alcance do olhar. Afinal, leitores do outro lado do Atlântico não se deparam com este texto escrito em São Paulo?
Mas o capitalismo, como os barbudos alemães bem entreviram, traz em seu bojo uma série de contradições. Capitalismo: uma história de amor (2009), documentário dirigido por Michael Moore, procura tensionar os limites éticos e sociais do sistema que forja a noção de universalidade humana e contrapõe muros e cercas farpadas para que os condenados da terra não possam se apropriar da riqueza socialmente produzida.
“O pão nosso de cada dia nos dai hoje.” (Mateus, 6, 11)
A humanidade não mais deveria orar pela própria subsistência. Quando não havia meios de desenvolvimento efetivo; quando a irracionalidade se configurava como nossa segunda natureza e projetava deuses capazes de realizar o que os homens desconheciam, a escassez de recursos clamava aos deuses e a Deus pela sobrevivência. Se não conseguimos revogar tal passagem do Pai Nosso, é porque chegamos a um grau de cinismo tão refinado que a fome, o desemprego e o desabrigo alheios já fazem parte da fauna urbana – sim, porque a humanidade capitalista vive sobretudo em cidades. A possibilidade não realizada de distribuição equitativa das riquezas relega a promessa iluminista de (re)construção racional da realidade ao subsolo da história. Subsolo incômodo e por vezes redivivo, mas, ainda assim – sentenciam os donos do poder –, subterrâneo.
Michael Moore arrola vários exemplos que demonstram a plasticidade ética do capitalismo. Tudo o que é sagrado é profanado: se o rim se regenera, por que não trocar uma parte do órgão por um vale-refeição? A indústria farmacêutica precisa testar os novos remédios que, de acordo com a lógica de maximização do capital, talvez devam prolongar a doença ao invés de curá-la de uma vez. (A amortização da cura ao invés de sua erradicação; fundo de capitalização patológica.) Assim, ratos humanos há muito desempregados acabam se oferecendo como cobaias para os medicamentos cujos efeitos colaterais serão testados in loco mediante um novo vale-refeição. Se quisermos exemplos grandiloquentes, poderemos invocar o experimento do presidente Harry Truman, que pulverizou Hiroshima e legou aos netos de Nagasaki as sombras fosforescentes de seus avós. Os campos de concentração nazistas, que bem poderiam render estudos de caso sobre excelência administrativa em cursos de MBA capitalismo afora, lançaram mão do ápice da racionalidade instrumental para acabar com a fome. Se não há famintos, não há fome, e o cálculo utilitário não quer saber se o bebê escorre pelo ralo junto com a água do banho.
Michael Moore discorre sobre a impossibilidade de o capitalismo erradicar a desigualdade social sem acossar – e criminalizar – os miseráveis. Então desponta a figura rediviva de Franklin Delano Roosevelt, o pai do New Deal, a política de intervenção estatal na economia que pôde retirar os Estados Unidos da profunda depressão econômica decorrente da crise de 1929. Roosevelt assenta as bases para a vindoura social-democracia. Que os ricos paguem altos impostos – afinal, a riqueza não é socialmente produzida? Que haja férias e descanso remunerados, que haja pensões e aposentadorias, que o acesso à saúde e à educação sejam universais. Metas que apenas a Europa social-democrata conseguiu alcançar durante o período que o historiador Eric Hobsbawm denominou como “idade de ouro”, por conta da iminência do espraiamento soviético após a Segunda Guerra. A solidariedade utilitária do Plano Marshall injetou dinheiro na Europa que se esgueirava entre os escombros para que a cortina de ferro não chegasse até os Pireneus. Mas, após o naufrágio da ameaça vermelha, o neoliberalismo pôde despontar como a retomada dos anéis que o grande capital outrora aceitara alugar para que seus dedos não fossem decepados. Mesmo a Suécia, que historicamente vinha ocupando o cume mundial do Índice de Desenvolvimento Humano, começou a desmontar sua estrutura de regulamentação pública das desigualdades (re)produzidas pelo capitalismo.
Capitalismo: uma história de amor contrapõe a democracia à selvageria do capital. Se cada um possui um voto e se a maioria é acossada pela plutocracia que insiste em se aferrar a seus privilégios, a solução democrática, segundo Michael Moore, se apresenta como a saída a ser radicalizada. Mas seria importante considerar se o sistema político consegue revolucionar, a partir de suas instituições, todo um modo de produção. E mais: o ímpeto social-democrata do documentário que pretende retomar a simbologia do New Deal não historiciza propriamente o debate e nem acompanha a transformação da reprodução do capital. O desmantelamento da social-democracia se deve única e exclusivamente à rapinagem do grande capital que já não teme o socialismo ou está profundamente relacionado à impossibilidade de absorção maciça de trabalhadores por parte das novas forças produtivas em contínua revolução tecnológica? A crescente falência do Estado e do mercado como reguladores econômicos não demonstraria a atualidade das teses do velho Marx sobre a contradição de um sistema que pressupõe o trabalho humano objetivo sem poder absorvê-lo na esteira produtiva? Não estaríamos diante de novas contradições históricas para a reprodução do valor socialmente gerido?
Se nos ativermos aos limites da democracia institucional e não nos voltarmos para o cerne das contradições do sistema de reprodução social, será inviável explicar como a democracia grega pode conviver com a revogação das pensões e aposentadorias garantidas constitucionalmente e como os funcionários públicos de Portugal têm que arcar com a redução de 40% de seus salários após as reformas democráticas condicionadas pelas grandes consultorias financeiras. Se a democracia radicalizada pressupõe a ocupação urbana contínua e a percepção de sua contradição basilar em relação ao capitalismo, o pensamento crítico precisa expandir suas categorias de análise para além dos conceitos decantados pela guerra-fria.
Sugestões de leitura
Gostaria de mencionar duas obras que me parecem seminais para refletirmos sobre os limites da transformação reformista do capitalismo – pensamento a contrapelo da noção de que a esfera política pode reproduzir o valor social indefinidamente para além das contradições do capital:
(1) Manifesto contra o trabalho, composto pelo Grupo Krisis: http://o-beco.planetaclix.pt/mctp.htm
(2) O colapso da modernização, de Robert Kurz. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1999.
Flávio Ricardo Vassoler é escritor, professor universitário, mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH/USP.
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